A Igreja foi uma invenção do Imperador Constantino?
Uma análise histórica acerca do Concílio de Nicéia
No
ano de 2005, o historiador nipo-britânico Joseph Atwill, publicou uma obra
intitulada “O Messias de César”. Nesse livro o autor defende a hipótese de que
Jesus de Nazaré não existiu, sendo então o cristianismo fruto de propagandas
militares de imperadores romanos da linhagem Flaviana, ou seja, Vespasiano, Tito
e Domiciano. Para Atwill, a mentalidade cristã surge não de um salvador humilde
e divino, mas sim das virtudes e da opulência dos imperadores romanos que
sitiaram Jerusalém.
Em
2013, em uma palestra intitulada “Covert Messiah”, Atwill reafirma suas
proposições inicialmente defendidas no livro de 2005, e ainda faz duras
críticas ao cristianismo como um todo, imputando-lhe às mortes de centenas de
guerras, e diversas perseguições ocorridas ao longo da história, e que por
conta de suas falhas e crimes, “as pessoas não precisam temer viver em um mundo
sem o cristianismo”.[1]
Dentre
muitos equívocos Atwill parece não levar em conta que o mundo pré- cristão já
era palco de incontáveis guerras e todo tipo de violência; ele também ignora o
fato de existirem provas materiais da existência histórica de Jesus de Nazaré
que são datadas antes mesmo do principado de Nero, que antecede o de Vespasiano
e seus filhos.
Em
suma, a tese de Atwill se consistiu em uma tentativa de revisitar a
historiografia tradicional acerca do cristianismo, e assim buscou trazer uma nova
abordagem, ainda que sua tese careça de mais sustância histórico-arqueológica.
No entanto essa tendência revisionista não é mérito de Atwill; desde o século
XVIII os iluministas buscaram atacar os pilares da fé cristã tanto em sua
filosofia e teologia e até mesmo em sua história. Nos últimos anos portanto,
criou-se uma tendência à desconstruir um surgimento da igreja cristã no século
I d.C. Essa postura foi compartilhada por muito tempo por historiadores de renome.
Assim sendo, ainda hoje há quem defenda a ideia de uma igreja cristã surgindosomente
com sua institucionalização no século IV d.C pelas mãos de Constantino I.
No
entanto aqui argumentaremos contra essa posição, defendendo o que se constitui
como a posição majoritária entre os historiadores, de que houve sim uma
aproximação maior do cristianismo com Roma à partir do século IV, no entanto, a
fé, a filosofia e a história do cristianismo certamente tem sua origem em
tempos anteriores, surgindo em meio às pregações de Jesus de Nazaré, seus
discípulos e posteriormente os Pais da Igreja. O que se manifestou no Concílio
de Neceia nada mais foi do que o surgimento de uma nova estrutura ou talvez um
novo tipo de “filosofia cristã”, talvez mais mesclada ao pensamento romano, mas
de modo algum é possível negar a existência de uma igreja que se confessava como
seguidora de Cristo oriunda do I século desta era. Assim sendo, neste artigo
abordaremos o que foi o Concílio de Niceia tal como a relação entre a igreja cristã
e o imperador Constantino.
1. A
Igreja e o Império Romano
A
relação entre a comunidade cristã, também conhecida como igreja, com o Império
Romano sempre foi a mais conturbada possível. Segundo a unanimidade dos Evangelhos,
Cristo Jesus foi preso e morto pelos romanos, e nos anos seguintes haveriam atritos
entre o governo de Roma e os cristãos, o que culminaria em perseguições ao
cristianismo em vários momentos ao longo dos séculos subsequentes.
De fato,
desde muito cedo os cristãos foram mal vistos pelos romanos de forma geral,
sobretudo após o grande incêndio na década de 60 do século I d.C. Escrevendo
acerca desse momento, o escritor romano Tácito diz:
Nenhum esforço humano, nem o poder do imperador, nem as cerimônias para aplacar a ira dos deuses faziam cessar a opinião infame de que o incêndio [de Roma] havia sido mandado. Por isso, com vistas a abafar o rumor, Nero apresentou como culpados e condenou à tortura aquelas pessoas odiadas por sua própria torpeza, que a população chamava de “cristãos”. Tal nome vem de Cristo, que no principado de Tibério, o procurador Pôncio Pilatos entregou ao suplício. Reprimida na ocasião, essa execrável superstição fez-se irromper novamente, não só na Judéia, berço daquele mal, mas também em Roma (...) À sua execução acrescentaram zombarias, cobrindo-os com peles de animais para que morressem devido à mordida de cães de caça, ou pregavam-lhes em cruzes, para que, após o fim do dia, fossem usados como tochas noturnas e assim consumidos. (TÁCITO. Anais, XV, v.44).
(...) foi proibido vender nas tabernas qualquer alimento cozido, fora legumes e hortaliças, quando antes eram servidas nesses lugares comidas de todos os tipos; os cristãos, espécie de gente dada a uma superstição nova e perigosa, foram entregues ao suplício. (SUETÔNIO. Vida de Nero, v.16).
Essa
aparente aversão por parte dos romanos se dava em grande parte por não entender
o que era o cristianismo e suas crenças. No início da igreja de fato o povo romano
não entendia sequer a diferença entre judeus e cristãos, razão pela qual o
imperador Claudio expulsou os judeus de Roma. Esse fato é narrado no livro de Atos
dos Apóstolos da seguinte forma:
Depois disso, Paulo afastou-se de Atenas e foi para Corinto. Lá encontrou um judeu chamado Áquila, natural do Ponto, recém-chegado da Itália com Priscila, sua mulher, em vista de Claudio ter decretado que todos os judeus se afastassem de Roma (Atos dos Apóstolos, XVIII, v.1-2).
Suetônio
também menciona esse fato quando em sua Vida de Claudio diz que “Como os judeus
se sublevavam continuamente por instigação de Chrestos, [Cláudio] os expulsou
de Roma.” (SUETÔNIO. Vida de Cláudio, v. 25). Nota-se então que esse fato ilustra
perfeitamente a falta de compreensão romana acerca de quem seriam os cristãos,
pois mesmo que os judeus também estivessem envolvidos nas “instigações de
Chrestos” não haveria razão para deixar de expulsá-los de Roma também, no
entanto, o fato de Claudio sequer ter feito menção a eles demonstra que para o
imperador, o cristianismo não passava de mais uma das várias seitas do
judaísmo. É perceptível também na fala de Suetônio que o próprio nome “Chrestos”
seria uma grafia errada de “Cristo”, o que denota ainda mais um certo
desconhecimento do autor que viveu no final do I século acerca do que era o
cristianismo.
Esse
de fato ilustra o quadro geral da visão romana acerca dos cristãos, ou seja, de
que eram um tipo de judeus; no entanto, após o cerco e queda de Jerusalém em 70
d.C. os cristãos começaram a ser vistos como algo diferente, ainda que
existissem muitas narrativas inverossímeis acerca do que o cristianismo
professava.
Dentre
as principais características equivocadas, ou ainda acusações aos cristãos, estavam
os crimes de lesa-majestade, odium humani generis (ou seja, ódio velado a
alguém por sua posição religiosa ou política), ateísmo, antropofagia e incesto.
Não demorou muito para que o cristianismo fosse categorizado como sendo religio
ilicita, ou seja, uma religião proibida e clandestina, e que não contava com uma
autorização oficial (ELIADE, 1979:134). Portanto, uma vez que Roma não via o
cristianismo como algo lícito, era perfeitamente “compreensível” e
“justificável” no pensamento romano, a perseguição dessa nova fé, assim como a
punição e execução de seus adeptos.
1.1 A
Igreja e o Imperador
O ponto
que certamente levou à um maior atrito entre essa nascente comunidade cristã e
o império foi a recusa em se prestar culto ao imperador. O governo romano
permitia certa “liberdade religiosa”, o que na verdade era uma tolerância
quanto a uma “segunda religião”, sendo a primeira a religião do culto imperial,
pois isso serviria para unificar o império – fato este que retomaremos quando abordarmos
a figura de Constantino I. Assim sendo, o culto imperial era a representação da
proteção do imperador como patrono de todo o império (LIVET; MOUSNIER, 1996:193).
O
culto imperial tinha por característica a divinização de um imperador morto,
pois honras públicas só poderiam ser oferecidas ao numen, o poder divino ou o
gênio do imperador, isto é, a representação de sua força e virtude; em outras
palavras era inviável prestar culto a um imperador ainda vivo. Após a morte, um
imperador seria divinizado pelo processo chamado apoteose e receberia ainda o reconhecimento
do Senado chamado consecratio (MENDES, 2013:153).
E em
torno dessa figura, que para o cidadão comum se tornava sublime e inefável, é que
se unificaria o Império, então qualquer outra religião poderia ser aceita,
contanto que o culto imperial, símbolo de unidade e, acima de tudo, civilidade,
fosse observado. Mas é notório que os cristãos não adotaram o culto imperial e
tão pouco estavam dispostos a transformar o Evangelho em uma “segunda
religião”, e a partir disso, e juntamente com todo o pré-conceito já existente,
acabariam assim por ser perseguidos.
Consequentemente
ser cristão é automaticamente estar contra a civilidade romana, e assim sendo, é
impossível exigir certos direitos se não for um cidadão, e é nesse contexto que
entendemos como os primeiros cristãos tiveram suas propriedades tomadas pelo
governo de Roma, e logo teriam outras restrições como as comerciais, por exemplo.
Esse seria o pano de fundo do Apocalipse de João, onde sob perseguição de
Domiciano os crentes foram considerados párias, e não cidadãos, privados de direitos
e assim tendo que passar pelo martírio.
O
historiador Donald L. Jones entende todo o livro como sendo um grande manifesto
contra o culto imperial (JONES, 1980:1034). A base para as argumentações de Jones
se dá primeiramente por conta da referência à igreja de Pérgamo: “Sei onde
moras: é onde está o trono de Satanás” (Ap 2:13). Pérgamo foi o primeiro grande
centro do culto imperial na Ásia Menor; nesse caso a menção joanina pode ser
uma referência crítica direta a uma perseguição àquela comunidade de crentes
que se recusavam a participar do culto imperial. Ainda segundo Jones, a
afirmação de que o Cordeiro vencerá a Besta porque é “Senhor dos senhores e Rei
dos reis” (Ap 17:14) pode ser interpretada como sendo a superioridade de Cristo
à figura do imperador.
O que
então pode ser dito até aqui é que a igreja cristã desde cedo possuiu muitas
divergências teológicas com o pensamento romano. Há autores como José Costa
Grillo e Pedro Paulo Funari, que às vezes enxergam certo antagonismo entre
Paulo e João quanto a essas divergências (GRILLO; FUNARI, 2016).
Tal antagonismo
se deve ao fato de que aparentemente Paulo tem uma tolerância maior com o
governo Romano, se valendo inclusive do tribunal de César, enquanto João possui
uma postura mais crítica e quase subversiva. No entanto não se pode sustentar
tal antagonismo pelo fato de que cada um dos autores bíblicos está tratando de
um contexto específico e em temporalidades distintas, assim, em sua epístola
aos Romanos, Paulo trata da sujeição geral às autoridades, pois estas foram
instituídas por Deus (Rm 13:1), e pese-se ainda o fato de que esta carta foi escrita
antes da perseguição de Nero. Já o apóstolo João está escrevendo às sete
igrejas que estão debaixo de perseguição, e em um mundo romano que já demonstra
certa hostilidade ao ser cristão de forma geral, então não haveria qualquer
divergência entre o pensamento paulino e o pensamento joanino, na verdade ambos
concordam na supremacia de Cristo como o único Kyrios (Senhor).
Vemos
então que as relações entre o Império Romano e a Igreja não tiveram um início
tão pacífico tanto quanto se é difundido até hoje, e tão pouco o cristianismo
poderia ser uma invenção de Roma, visto não só a existência de perseguições em
vários momentos, mas também as várias críticas e expressões ofensivas de vários
autores romanos acerca dos cristãos. No entanto em algum momento houve uma maior
aproximação entre a Igreja e Roma, e ela se dá gradualmente ao longo do II e
III século d.C., até que por fim, no século IV há uma união entre a instituição
cristã e o Império Romano. Como se deu tal aproximação é o que trataremos na
última parte deste artigo.
2. A
Institucionalização da Igreja
Quando
empregamos o termo “institucionalização” para tratar do que ocorreu com a
Igreja ao longo do século IV d.C., estamos nos referindo a um longo processo
histórico que praticamente se inicia quase duzentos anos antes. Esse processo
nada mais é do que a sistematização de cada doutrina cristã e a construção de
uma identidade cristã mais definida. Salientaremos apenas que, após o Concílio
de Niceia no século IV, podemos observar o surgimento de uma “nova” identidade
cristã mais atrelada aos valores romanos, afinal, se há ainda hoje uma
instituição que se denomine “Igreja Católica Romana” certamente esta conserva em
si própria algo do antigo Império e de suas crenças. Até o final desde artigo
temos por objetivo estabelecer a diferença entre os termos “cristianismo” e
“romanismo”, sendo o primeiro originário do I século, enquanto o segundo se
define com mais clareza entre o III e o IV séculos d.C.
Para
então chegar à tais diferenças termológicas, é necessário antes apontar
primeiro o desenrolar da história cristã entre o II e o III século. Não nos
prenderemos aos debates e a cada evento ocorrido pois não é nosso objetivo aqui
traçar uma abordagem mais exaustiva de todo o Período Patrístico.
2.1 O
“Período de Transição”
O que
definimos aqui por “transição” nada mais é do que a desenvoltura histórica da
Igreja nos primeiros séculos da nossa era. Como observamos anteriormente, o
próprio contexto do Apocalipse de João reflete que no final do século I,
sobretudo durante o principado de Domiciano, houve uma perseguição geral aos
cristãos, onde inclusive se deu o exílio de João em Patmos, onde ele recebeu as
visões do Apocalipse. Até o fim do governo de Domiciano a situação pareceu
amenizar, e após sua morte, seu sucessor, o imperador Nerva, teve uma postura
mais branda com os cristãos, postura essa que se manteve também com o sucessor
de Nerva, Trajano, isso no início do século II.
No
entanto, mesmo que a postura do imperador fosse mais pacífica em relação à
Igreja, isso não significava porém que todos os problemas estariam assim
resolvidos. Mesmo durante o período de tolerância no governo de Trajano ainda
houve certa hostilidade por parte de governantes locais para com a Igreja ou ainda
do próprio povo, o que inclusive gerou “perseguições” mais localizadas por
assim dizer. Na Bitínia por exemplo, por volta do ano 110, muitos cristãos
foram falsamente acusados e levados diante do governador Plínio, o qual não vendo
qualquer crime verídico inocentou aqueles cristãos.[2]
Nesse
período também surgem ataques teológicos, muitas vezes surgidos dentro da
própria igreja, como foi o caso da ameaça da heresia conhecida como gnosticismo
[3] a qual foi combatida por teólogos como
Irineu de Lyon.
Nesse
espaço de tempo o próprio Império Romano começou a sofrer transformações
políticas irreversíveis. Várias crises políticas se instauraram, talvez a maior
delas foi a crise no sistema do Principado, agora não havia mais centralidade
no príncipe (imperador) como um ser único, pois um sistema de “co-imperadores”
o substituiu; assim não era incomum existirem dois ou mais imperadores
governando o Império ao mesmo tempo.
Quanto
aos cristãos, ainda passariam por uma nova, e talvez pior, perseguição, a qual
se deu sob o domínio de Diocleciano em fins do III século. Uma Roma fragilizada
politicamente ainda lidava com a questão da fé cristã, a qual continuava a
crescer e a se desenvolver tanto no Oriente quanto no Ocidente. Esse clima de instabilidade
só teria fim quando uma figura pacificadora forte se insurgisse; historicamente
tanto Roma quanto a Igreja encontrariam de certa forma essa figura pacificadora
na pessoa de Constantino I, e acerca dele trataremos agora.
2.2 Constantino
e a Igreja
Galério
substitui Diocleciano como imperador, no entanto vem a falecer no ano 311 d.C,
e assim tem início uma nova disputa por poder, e dessa vez quatro imperadores
disputavam a totalidade do Império: Maximinio, Maxêncio, Licínio e Constantino.
Houve guerra entre esses quatro imperadores, mas por fim apenas restou Maxêncio como a última grande ameaça ao poder de Constantino no Ocidente. Em 312, Constatino afirmou ter tido um sonho na véspera da batalha contra Maxêncio, onde viu Chi/Rhô (☧), o monograma que representa as duas primeiras letras do nome Christos em grego (Χριστός). Então, Constantino grava esse símbolo nos escudos de seus soldados e após derrotar Maxêncio na Batalha de Ponta Mílvia se constitui como senhor do Ocidente, tendo como seu “co-imperador” Licínio como senhor do Oriente (CARLAN, 2007:28). Há um
consenso, sobretudo entre alguns teólogos que atribuem o próximo ato de
Constantino à sua conversão ao cristianismo, no entanto o imperador não se
considerou cristão, embora tivesse certa simpatia pela igreja cristã. Mas é
fato que em 313 d.C, Constantino, juntamente com Licínio, assinam o Edito de Milão,
o qual proibiria qualquer perseguição futura ao cristianismo, pois agora este
não seria mais considerado uma seita ou religião proibida. Conforme transcrito
por Eusébio de Cesareia, em sua História Eclesiástica, o Edito de Milão assim professava:
Portanto, como eu, Constantino Augusto, e eu Licínio Augusto, chegamos sob auspícios favoráveis a Milão e tomamos sob consideração todos os negócios pertinentes ao benefício e bem-estar público, estas coisas entre outras nos parece ser muito vantajosas e proveitosas a todos (...) É assim que podemos conceder aos cristãos e a todos igualmente a livre escolha e seguir o tipo de adoração que quiserem. Que qualquer divindade e poder celestial que possa existir seja propício a nós e a todos os que vivem sob nosso governo (...) que nenhuma liberdade seja recusada aos cristãos para seguirem ou manterem suas observâncias ou culto. (EUSÉBIO DE CESAREIA. História Eclesiástica, X, cap. V).
No
entanto, conforme o cristianismo cresce no império, Constantino de fato cria
uma aproximação maior com essa fé, o que como já apontamos, nada tinha de
ralação a qualquer conversão do imperador, mas muito mais com sua política de pacificação
geral. Assim sendo, se havia uma crise na maior [e mais útil] religião do
império, certamente o imperador se sentiria tentado a ajudar e a resolver
qualquer problema, e assim promulgar a paz na cristandade e consequentemente em
seus próprios domínios.
É
nesse contexto que se dá a convocação de um concílio por parte do imperador na cidade
de Niceia, e isso a fim de romper com questões problemáticas que porventura
talvez trouxessem inquietações para o já fragilizado Império Romano.
2.3. O
Concílio de Niceia
Como
apontamos, o pano de fundo desse concílio é a tentativa de manter a paz no
Império Romano. Pontuamos contudo, que esse não foi o primeiro concílio
promovido por Constantino, sendo antecedido por alguns outros, com destaque maior
para o Concílio de Arles em 314 d.C. Então, esse novo grande concílio se deu em
maio de 325 d.C.
Mas o
que de fato foi tratado no Concílio de Neceia? Podemos dizer que aí surge a
Igreja Cristã? Certamente a segunda pergunta é mais fácil de se responder, sobretudo
após tudo o que tratamos neste artigo; uma vez que temos documentações que já apontam
para o cristianismo desde o final do século I, uma criação da igreja cristã no
século IV parece improvável. Mas é válido rebater o que talvez seja a maior
acusação à fé cristã.
Fora
dos textos bíblicos já trouxemos autores romanos que atestam a existência da
Igreja no século I d.C. E como se não bastasse, há ainda o testemunho de Flávio
Josefo, que escreve em Roma após o ano 70 d.C acerca de Cristo e de seus seguidores:
Nesse mesmo tempo apareceu Jesus, que era um homem sábio, [se todavia devemos considera-lo simplesmente como um homem], tanto suas obras eram admiráveis. Ele ensinava os que tinham prazer em ser instruídos na verdade e foi seguido não somente por muitos judeus, mas mesmo por muitos gentios. Ele era considerado o Cristo. Os mais ilustres da nossa nação acusaram-no perante Pilatos e ele fê-lo crucificar. Os que o haviam amado durante a vida não cessariam de declarar que ele lhes apareceu ressuscitado e vivo no terceiro dia, como os santos profetas o tinham predito e que ele faria muitos outros milagres. É dele que os cristãos, que vemos ainda hoje, tiraram seu nome” – (FLÁVIO JOSEFO. História dos Judeus. CPAD, 2000:418).
Anano, um dos que nós falamos agora, era homem ousado em empreender, da seita dos saduceus, que, como dissemos, são os mais severos de todos os judeus e os mais rigorosos no julgamento. Ele aproveitou o tempo da morte de Festo, e Albino ainda não havia chegado, para reunir um conselho diante do qual fez comparecer Tiago, irmão de Jesus chamado Cristo, e alguns outros; acusou-os de terem desobedecido às leis e os condenou ao apedrejamento. Esse ato desagradou muito a todos os habitantes de Jerusalém, que eram piedosos e tinham verdadeiro amor pela observância das nossas leis” (FLÁVIO JOSEFO. História dos Judeus. CPAD, 2000:465).
Nesse
trecho Josefo narra o martírio de Tiago, irmão de Jesus. Tal relato bate com as
outras fontes aqui já mencionadas, de que os cristãos estavam ligados à Cristo,
a quem proclamaram Messias e Filho de Deus. Assim sendo, após o relato de
autores externos à cristandade, torna-se muito improvável que o Concílio de Niceia
tenha sido na verdade o ponto de partida para a fé cristã.
No entanto ainda nos resta examinar o que de fato foi realizado e determinado em tal reunião.
No entanto ainda nos resta examinar o que de fato foi realizado e determinado em tal reunião.
Como
pois apontamos, Constantino estava em busca de estabilidade e paz para seus domínios,
e logo que as perseguições cessaram, uma nova ameaça surgiria para perturbar
essa paz, e tal ameaça foi o ponto de partida para a convocação do concílio;
aqui nos referimos a chamada controvérsia ariana.
O
chamado arianismo, assim referido por conta de seu fundador, Ário,
anteriormente um diácono de Alexandria. Ário defendeu que Jesus não poderia ser
Deus, ou seja, o arianismo negava a divindade de Cristo, embora que não
negassem que Cristo fosse o mais elevado ser da criação (GRENZ; GURETZKI;
NORDLING, 2007:15).
Ainda
que resolver esse problema fosse um dos motivos iniciais para a convocação do
concílio, certamente não foi o único. Conforme o pesquisador Carvalho Júnior
(2011), o Concílio de Niceia buscou não só resolver a questão da controvérsia
ariana, mas também buscou estipular as datas importantes da cristandade, desde a
Páscoa até a oficialização do domingo como um dia de adoração; e ainda buscar
uma concordância quanto a punição de certos pecados.
Mais uma vez pontamos que nada que foi dito em Niceia foi simplesmente ali criado. Na verdade, tudo o que o concílio fez foi reunir bispos e representantes de todas as regiões e ouvi-los. Certas práticas que eram realizadas pela maioria foram tornadas oficiais enquanto outras mais obscuras foram recusadas. De fato o imperador estava presente, mas sua participação se limitou a apenas ser um anfitrião, uma vez que pouco Constantino compreendia das Escrituras, as quais foram a bússola moral e teológica dos bispos em Niceia.
Mais uma vez pontamos que nada que foi dito em Niceia foi simplesmente ali criado. Na verdade, tudo o que o concílio fez foi reunir bispos e representantes de todas as regiões e ouvi-los. Certas práticas que eram realizadas pela maioria foram tornadas oficiais enquanto outras mais obscuras foram recusadas. De fato o imperador estava presente, mas sua participação se limitou a apenas ser um anfitrião, uma vez que pouco Constantino compreendia das Escrituras, as quais foram a bússola moral e teológica dos bispos em Niceia.
Quanto
a essa questão da organização do cânon da Escritura não abordaremos neste
artigo pois requereria um estudo mais completo, mas já pontuamos que o cânon, a
bíblia que foi confirmada em Niceia, nada mais foi do que a constatação de todos
os livros que já eram considerados em todos os lugares como canônicos, de modo
que a bíblia como a conhecemos não foi criada no Concílio de Niceia, como muitos
ainda hoje insistem em declarar.
Assim
sendo, a resolução final do Concílio de Niceia, o chamado Credo Niceno, se
constituiu da seguinte forma:
Creio em um Deus, Pai Todo-poderoso, Criador do céu e da terra, e de todas as coisas visíveis e invisíveis; e em um Senhor Jesus Cristo, o unigênito Filho de Deus, gerado pelo Pai antes de todos os séculos, Deus de Deus, Luz da Luz, verdadeiro Deus de verdadeiro Deus, gerado não feito, de uma só substância com o Pai; pelo qual todas as coisas foram feitas; o qual por nós homens e por nossa salvação, desceu dos céus, foi feito carne pelo Espírito Santo da Virgem Maria, e foi feito homem; e foi crucificado por nós sob o poder de Pôncio Pilatos. Ele padeceu e foi sepultado; e no terceiro dia ressuscitou conforme as Escrituras; e subiu ao céu e assentou-se à direita do Pai, e de novo há de vir com glória para julgar os vivos e os mortos, e seu reino não terá fim. E no Espírito Santo, Senhor e Vivificador, que procede do Pai e do Filho, que com o Pai e o Filho conjuntamente é adorado e glorificado, que falou através dos profetas. Creio na Igreja una, universal e apostólica, reconheço um só batismo para remissão dos pecados; e aguardo a ressurreição dos mortos e da vida do mundo vindouro.[4]
Assim
então podemos fazer algumas considerações pertinentes. O Concílio de Niceia foi
de fato convocado pelo imperador, e por questões que mesclavam a religiosidade
e a política. Contudo, o que também foi possível observar ao longo deste artigo
é que já havia uma religião cristã prévia, perseguida e ativa no mundo romano,
e que remontava aos discípulos de Jesus e ao próprio Cristo. Sendo assim é
falaciosa a afirmação de que foi Constantino quem criou a Igreja, a bíblia e os
sacramentos no Concílio de Niceia, uma vez que tal reunião teve âmbito
puramente pacificador e de confirmação dos pontos comuns em que todos criam, ou
seja, a plena divindade de Jesus e sua obra como único caminho para a salvação.
Mas
certamente houve o surgimento de uma instituição ou ainda uma “corrente cristã”
nova; é aqui que podemos fazer a distinção entre o cristianismo e o romanismo.
Sendo que esse romanismo nada mais é do que a junção de Roma com a fé cristã, gerando
assim uma religiosidade híbrida entre os dois, e que hoje ainda vive através da
Igreja Católica Romana, cuja sede é na antiga capital imperial, adotando o
antigo idioma do império (o latim) como língua sacra, e o seu líder, o Papa,
tem como título Pontifex Maximus – outrora o título dos imperadores romanos, colocando-os
como a “ponte” entre os deuses e os homens. Ou seja, podemos defender a criação
de uma igreja católica romana, ou do romanismo como doutrina, mas certamente
não a origem ou invenção da Igreja Cristã, essa iniciada pelo próprio Cristo
(Cf. Mt 16:13-18).
Por
fim apontamos que a Igreja Cristã, ou ainda a Igreja de Jesus, é aquela não
fundada por Constantino, mas sim por Jesus, e fundamentada pela doutrina dos apóstolos
e profetas, e regada pelo sangue dos mártires.
______
Notas:
[1] Disponível em https://www.terra.com.br/noticias/ciencia/pesquisa/historiador-jesus-nao-existiu-e- cristianismo-tem-sido-uma-catastrofe,6b39f4113ccc1410VgnVCM5000009ccceb0aRCRD.html, acessado em 19/05/2021.
[2] Disponível em https://leituracrista.com/livros/a-historia-da igreja/roma_e_seus_governantes_64_dc 177_dc/o_curto_porem_pacifico_reinado_de_nerva.html, acessado em 20/02/2021.
[3] Heresia que ganhou força no século II d.C. e que cria na separação do mundo material do mundo espiritual, sendo o primeiro inteiramente mal e corrompido. Criam ainda na transmissão de conhecimentos (gnosis) secretos, e que só os iniciados poderiam ter acesso pleno ao espiritual e transcendente por meio desse conhecimento oculto. (GRENZ; GURETZKI; NORDLING, 2007:63).
[4] Disponível em http://www.monergismo.com/textos/credos/credoniceno.htm, acessado em 20/05/2021.
BIBLIOGRAFIA
Referencias
documentais
A
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EUSÉBIO DE CESAREIA. História Eclesiástica. 25ª impressão, Rio de Janeiro: CPAD, 2019.
EUSÉBIO DE CESAREIA. História Eclesiástica. 25ª impressão, Rio de Janeiro: CPAD, 2019.
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Caroline da Silva. Atenágoras e a Petição em favor dos cristãos: identidade e alteridade
religiosa no Império Romano (século II d. C). Revista Mundo Antigo – Ano IV, V.
4, N° 08 – Dezembro – 2015, p. 35-47.
- Autor: Rafael Silva dos Santos - Graduado em Teologia pelo Instituto Bispo Roberto McAlister de Estudos Cristãos. Graduado em História pela Universidade Estácio de Sá. Mestre em História pela Universidade Estadual do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Brasil.